O telemóvel tocou. Na realidade há dias que ansiava por aquela chamada. “Precisamos de ti”, disseram do outro lado. Era exactamente por aquelas palavras que ansiava. Abri o armário e tirei aqueles calções azuis escuros e a camisola azul que há quase três anos que não vestia. Calcei as meias de novo e com aqueles pequenos penduricalhos azuis agarrados por um elástico desci as escadas e avisei a minha mãe que só voltava amanhã para almoçar, precisavam de mim lá. Ela não me contrariou, como poderia se eu estava a dar um pouco de mim sem querer receber nada em troca.
Assim que lá cheguei todo se tornou claro para mim. É óbvio que já tinha visto a dimensão daquela catástrofe através das notícias, não havia outro assunto nas televisões nos últimos dias. Contudo, ver com os meus próprios olhos tornava-o ainda mais chocante. Olhava à minha volta e o verde que outrora cobria todos aqueles montes tinha-se transformado em negro como uma noite sem estrelas. Sentia-se o cheiro a queimado no ar e ainda era possível ver algumas colunas de fumo à distância. “Vais servir refeições, no entanto prepara-te. Vais trabalhar a noite toda”, foram as palavras que ouvi ao longe enquanto me tentava adaptar àquele tão estranho mundo.
Era o fim da tarde quando chegaram as primeiras panelas com comida e com elas vieram os primeiros bombeiros. Cumprimentava-os um a um, com um boa tarde e um sorriso. Olhava para eles e sentia o cansaço e a dor de muitos, estavam ali há horas sem dormir, a combater num combate desleal e onde eles são verdadeiros heróis. A sua força atravessava o limite normal de qualquer humano. Que podia eu fazer mais que tentar distraí-los durante breves instantes? Enquanto a noite caia chegavam cada vez mais, eram polícias e militares, bombeiros de todas as partes do país e alguns do nosso país vizinho. Dávamos dois dedos de conversa e seguíamos a fila, eles jantavam e eu continuava a tentar cuidar o melhor que podia deles. Alguns já não viam comida fazia um dia, o combate às chamas tinha sido tão forte e intenso que não houve tempo para comer grande coisa. Umas bolachas aqui, uma sandes ali confidenciavam-me por entre garfadas do prato que devoravam em breves instantes.
“Podemos comer mais um pouco?”, perguntou um jovem meio envergonhado. “Enquanto houver no tacho não nego comida a ninguém, ainda mais a vocês!”, como podia imaginar negar comida a quem está a lutar por algo que muitas vezes nem é seu? “Já não temos mais nenhum tacho aqui, temos de pedir mais”, sussurraram-me ao ouvido. Olhei para a fila à minha frente, ainda faltavam tantos e outros tantos estavam por vir. Porra, senti a raiva a crescer dentro de mim. Como podia faltar comida para eles? Como podíamos ter permitido isto? Como é que lhes vou dizer que já não tenho mais, que vão ter de esperar depois de terem estados horas debaixo do sol, a tentar apagar um fogo que parece não ter mais fim. Lá teve de ser e cerca de uma hora depois lá apareceu um pouco mais de comida para reconfortar os seus estômagos.
A noite tinha chegado e com ela o frio também. “Vou fazer café”, disse enquanto me dirigia com uma garrafa de água de 1,5L para o gerador. Estávamos no alto da serra e a única maneira que tínhamos para aquecer a água é através do calor residual produzido pelos geradores. É incrível como estas pequenas coisas falham nas horas mais importantes. “Tem por aí algo quente? E um cobertor?”, perguntou um GNR já tinham umas longas horas do jantar. Aquela espécie de café era a única bebida “quente” para aquela noite gelada.
A noite passava e com ela algumas visitas para um café quente. Ao longe o clarão da manhã começava a nascer. A aragem que corria cortava a face como se de espinhos se tratassem. Embrulhado num cobertor olhava aquelas montanhas, outrora tinham sido verdes e agora não mais que carvão eram. Como tudo pode mudar em breves instantes, como a natureza é tão frágil e tão forte ao mesmo tempo. Somos tão pequenos comparados com aquilo que nos rodeia.
“Ainda há algo para comer?”, despertou-me uma voz dos meus pensamentos. Olhei para o lado e reconheci aquela farda vermelha, era mais um bombeiro. Mais um daqueles heróis que combateu incansavelmente aquele incêndio. Não foi o único, centenas deles passaram por ali. Olhei o seu cansaço, as suas dores, a sua pele estava da cor da cinza. E ali estava eu, a fazer o que podia, a tentar melhorar as suas vidas, a tentar ajudar aqueles que nos estavam a ajudar a todos. Olhámo-nos nos olhos, não dissemos nenhuma palavra, ambos sabíamos o que queríamos dizer. Um obrigado não chegava…
Mais um dia à espera na paragem. Mais um final de tarde perdido entre casa e o trabalho no autocarro. Mais uma série de vidas com que me cruzo e de que nada sei, nada saberei e contudo, nada me esforcei para saber. Vejo o autocarro aproximar-se ao longe, já vem cheio lá de baixo. Três números bem grandes enfeitam a sua frente, 758. “Ainda há muita paragem a percorrer até chegar ao destino.”, pensei. Com o aproximar do mesmo é fácil perceber que não há muito espaço para todos os que o esperam. Iniciam-se os empurrões, as palavras, os gestos, os pensamentos, os sonhos e acaba-se a humanidade. Aqueles que conseguem entrar, tal como eu, têm pela sua frente uma outra batalha. Dentro do autocarro começa-se a sentir o espaço a reduzir, as pessoas cada vez mais próximas, cada vez menos ar, cada vez mais apertado, cada vez menos vida. Vejo, nos lugares do fundo sentada num banco uma rapariga de fones nos ouvidos, “Quem me dera ser eu”, pensei enquanto sentia a pessoa do lado a quase colar o seu corpo no meu. “Só mais um bocadinho”, “É só um jeitinho” ouve-se sair da boca daqueles que, por pouca sorte, ainda têm um pé de fora. Mas que bocadinho é possível dar mais? Alguns já vão quase ao colo do motorista, outros já treparam e se sentaram no lugar das malas. Todos sabemos que vem aí o empurrão final e a porta lá se fecha. Arrancou, ninguém se moveu, também seria impossível. Aquele autocarro parece uma lata de sardinhas, faz-se jus à cultura barata da cidade onde habitamos.
Segue caminho, aquela lata de quatro rodas por estradas atoladas de carros, por ruas sem alma viva. Cheia de almas encarceradas numa vida sem vida, cheia de suspiros de lamentação, inundada pelo cheiro a pessoas, a cansaço, a desilusão, a desespero e tristeza. À medida que avança pelas ruas da cidade que tão bem conhece vai ficando cada vez mais vazia. Um vazio interior, uma vida cada vez mais desperdiçada, cada vez mais espaço existe entre aqueles que ainda resistem. Começo a ouvir uma conversa entre duas senhoras. Nada de novo. Se não é o governo, é o tempo de espera, o futebol, o que a vizinha Maria fez à Elvira, o preço do gasóleo, as doenças, como a geração actual está perdida e ligada às máquinas e, para terminar, o tema que mais aprecio, o tempo. “Dizem que vai chover”, “Hoje está sol, mas quando me alevantei estava de chuva” e por aí seguem outras indicações meteorológicas banais de quem olhou para o vidro e viu como estava o dia. Faltam duas paragens para acabar a carreira, é aqui que estas duas senhoras descem. É aqui que um silêncio sepulcral invade o autocarro. A quantidade de almas que ali resiste pode ser contada pelos dedos das mãos. Os olhares cruzam-se por entre pequenos gestos de cansaço e sem vida. “Estou quase em casa” é o pensamento que passa a todos pela cabeça. Ao fundo já consigo ver a última paragem. Já existe uma pequena esperança em cada um de nós. Um telemóvel toca todavia, ninguém o atende. Ninguém sabe de quem é. Poderia ser de qualquer um de nós. E, subitamente, parou. A porta abriu-se, era altura de sair. Olhei de novo para aquele pequeno espaço onde me tinha cruzado com tantas vidas, nenhuma se tinha cruzado com a minha na realidade. Parecia gigante agora, há uns minutos atrás era tão pequeno. Estava vazio, não era o único assim. Passei pelo condutor e disse “Boa Noite” com uma voz de quem a fadiga e a fome já estava a levar a melhor. Atrás de mim ouvi uma voz alegre dizer-me “Boa Noite, amanhã à mesma hora, certo?”. Olhei para trás e sorri, talvez não estivesse tão vazio assim aquele autocarro. Talvez sempre houvesse vida ali. Talvez alguma vida se tinha cruzado com a minha.
A Maria Farias e a todos aqueles que estão tão longe e tão perto das suas famílias,
Era mais uma noite para muitos de nós, uma noite de felicidade para todos aqueles que partilhavam connosco as pedras daquela calçada junto ao rio. Como é incrível que em alturas de festa ninguém se lembra da crise, da guerra e tantos outros problemas que assolam o nosso planeta. E ainda bem, qualquer ser humano precisa de ter pequenos escapes à sua própria realidade para sobreviver. Olhava em meu redor e sentia um misto de solidão e de conforto. Na realidade, e durante os próximos anos, aqueles que me rodeavam serão a minha família longe de casa.
10… Como eu me apercebia que tinha sido um ano estranhamente incrível, 9… As pessoas que fizeram parte dele, 8… As pessoas que conheci, 7… As pessoas que deixei para trás, 6… Contudo, havia algo que eu não entendia completamente, 5… Algo que me fazia pensar em casa, 4… E como na realidade eu estava tão perto da minha comparado com tantos outros no mundo, 3… Como eu tinha a opção de entrar num autocarro, 2… E em poucas horas estar perto daqueles que são o porto de abrigo, 1… Poucas horas e poder abraçá-los de novo, 0… e um novo ano começava.
Se por um lado ouvia o estalar do fogo-de-artifício, por outro pensava na sorte que tinha em ter aqueles de quem gosto perto de mim. Nem todos temos essa possibilidade. E, actualmente, somos cada vez menos a tê-la. Imagino como deve ser difícil desembarcar sozinho num local completamente estranho para nós, sem ninguém à nossa espera, sem nada para nos podermos apoiar ou, simplesmente, algo que nos faça sentir seguros. Olhei o fogo-de-artifício enquanto dava mais um gole naquele copo de champanhe que partilhava com tantos outros naquela rua. Era estranho como dentro de mim já não fazia sentido aquilo que estava a acontecer. Não estava triste mesmo sabendo que para trás deixava alguns, estava feliz por estar a juntar outros com quem quero partilhar mais momentos como aquele.
Sei que um dia será a minha vez, muito provavelmente. A minha vez de ir, sem ter ninguém à minha espera, sem ter um sítio a que chamar casa, num outro qualquer país deste tão grande mundo. Um sítio em que me sentirei sozinho e onde os telefonemas e as chamadas de vídeo nada vão fazer para apaziguar a saudade ou a solidão. Um sítio onde não terei ninguém a quem recorrer nas horas de maior aperto, nem um corpo para abraçar dos dias mais tristes. Onde apenas serei eu e o mundo, pelo menos durante uns tempos. Se há uma qualidade que nós, seres humanos, temos e que me fascina imenso é o poder de criar laços. O facto de não gostarmos de estar sozinhos no mundo faz-nos conhecer pessoas, torna-las nossas e parte da nossa família. Amigos que estarão lá para tudo, incluindo “substituir” a própria família nos momentos em que mais precisávamos dela.
Finalmente o fogo-de-artifício tinha acabado e sentamo-nos a observar o rio a passar por nós. Na realidade, nenhum de nós estava em casa, uns mais longe que os outros é certo, contudo, sentíamo-nos em casa. Abraçámo-nos e trocámos olhares entre nós. E as lágrimas de saudades que deixávamos cair por a família estar longe eram substituídas por sorrisos, pois sabíamos que não estávamos sozinhos.
About me
Loís Carvalho, 21 anos, Mundo. Existe um sem fim de sítios onde ir, pessoas por conhecer, vidas para viver, sonhos para alcançar, mundos por descobrir.